Casamento às Cegas 50+ escancara a falência dos relacionamentos
- Jamila Gontijo
- 19 de out.
- 6 min de leitura
Atualizado: 20 de out.
Reality show na versão brasileira comprova que o fracasso dos afetos não se revolve com o passar da idade

Amor até que a realidade nos separe
(Jamila Gontijo*)
Imagine que você, mulher cheia de amor para dar, vai para Lua de Mel e na noite de núpcias o seu noivo, ao invés de colocar em prática todas as promessas de virilidade extraordinária, vira as costas para você e dorme profundamente. Imagine que esse mesmo noivo encontra um casal de amigos no hotel em que estão e dá em cima da mulher do amigo - afinal, ela deu brecha pra isso, era mais jovem e mais atraente aos olhos do sexagenário. Corta para uma outra cena com outro casal: a mulher diz para o seu pombinho que escreveu os votos para o casamento deles, e a reação do querido é se revoltar à ponto de esbravejar, chamar a amada de esnobe, levantar e deixar ela sozinha na mesa do restaurante. O clássico chilique do homem ressentido que inventa uma desculpa para romper o relacionamento.
Estes são apenas duas cenas do reality show de horrores afetivos protagonizados pelos participantes da temporada 50+ do Casamento às Cegas, na versão made in Brazil. Eu confesso que maratonei o programa entre gargalhadas, vergonha alheia e total espanto diante da incapacidade dos casais em estabelecer vínculos minimamente saudáveis. A falta de escuta, a incapacidade de diálogo, a reatividade, a intolerância com as diferenças e uma profunda falta de autoconhecimento - o que leva a escolher parceiros pelos piores motivos - faziam parte do comportamento da maioria dos participantes.
Não que este cenário de inabilidade afetiva seja uma surpresa para ninguém, e muito menos para mim, que além de ter minhas próprias experiências para contar, observo as relações humanas na perspectiva da psicanálise junguiana. Só que assistir a isso em uma série de streaming do Netflix dá a sensação de que estamos sacramentando o fim da habilidade humana de se relacionar - sem perspectiva de final feliz. A cada capítulo eu pensava: não pode ficar pior. E ficava. O que não me impediu de assistir a temporada até o fim. Aliás, as cenas tragicômicas aumentaram minha curiosidade sobre o desfecho dos casais - que no último capítulo decidem se sobem ao altar e dizem "sim" ou "não" um para o outro diante de uma plateia trabalhada na paleta de cores do casal, mas totalmente incrédula.

Noiva em fuga ou em negação? (Imagem do filme nacional A Hora das Estrela)
FREUD NÃO EXPLICA
Para evitar spoilers e a ira descontrolada de alguns participantes - que ficou registrada em video na própria série - eu vou evitar citar nomes aqui, até porque o interessante da análise é perceber como os participantes encarnam comportamentos universais - os famosos "arquétipos" que Carl Jung tanto falava para explicar como somos movidos por forças ancestrais e inconscientes. Todo nós sofremos a influências destes modelos arquetípicos, o problema é que alguns de nós, por falta de maturidade e autoconhecimento, são tomados por esse "personagem", de modo a perder a naturalidade e a autenticidade. O resultado é a total desconexão com os parceiros, o que gera uma escalada de conflitos e uma série de relacionamentos rápidos e fracassados. Soa familiar?
A temporada 50 + está repleta de Peter Pans, que são homens que não querem envelhecer, e pra isso fogem de intimidade, compromisso e rotina se refugiando na Terra do Nunca, onde tudo é diversão e aventuras. Na psicanálise junguiana a gente chama esse tipo de "Puer", que define os que têm um comportamento imaturo, pueril, diante da vida e dos relacionamentos. Essa personalidade infantil ainda está presa à esfera da infância, e por isso acaba sabotando os relacionamentos - projetando neles as questões maternas e paternas.
A versão feminina do Puer também estava no elenco das mulheres 50+ do programa, só que na pele da "princesa entediada" - que nunca está satisfeita com o pretendente porque ele nao é o papai. E teve ainda a Megera arrependida, que igual à Medéia no mito de Jasão, fez de tudo para "ajudar" o noivo, mas o que estava fazendo na verdade era projetar o lado sadomasoquista de controle e co-dependência. A Megera foi se revelando até o final do programa e só piorou depois que a temporada acabou (quem quiser saber mais sobre isso vai precisar pesquisar as tetras pós-fim de temporada).
Um aspecto relevado no programa confronta a ideia psicanalítica da inveja feminina do falus - a suposta inveja do pênis. O que ficou evidente, em pelo menos dois homens que participaram do "experimento", é que a inveja incide muito mais sobre os homens em relação às mulheres bem sucedidas com as quais estavam se relacionando. Um deles se incomodava muito com a fato da "noiva" ter um alto poder aquisitivo - o que ele chamou de "materialismo", enquanto outro se declarava ofendido com a "noiva" que resolvia tudo sozinha e "sabia de tudo".
Por outro lado, vi mulheres projetarem delírios românticos sobre seus parceiros, deixando com que a fantasia nublasse sua capacidade de enxergar o ser humano real diante delas, o que elimina a possibilidade de existência do outro, e cria expectativas absurdas e decepções retumbantes - e claramente anunciadas ao olhar atento.
DISPONÍVEIS NÃO ESTÃO DISPOSTOS
É claro que a ideia original do Casamento às Cegas é uma crônica de fracasso anunciado: apostar que pessoas de contextos sociais aleatórios se apaixonem, se amem e se casem em poucas semanas de convívio. Maaaas, a gente adora acreditar no amor e temos uma curiosidade quase mórbida em assistir aos "experimentos" antropológicos em forma de reality show - a audiência desse tipo de programa é uma prova disso.
Partir da premissa de que o amor pode acontecer sem que a gente veja com quem estamos falando alimenta a fantasia de que o amor não está na beleza exterior, mas sim na beleza interior. Ao que parece, apesar de vivermos na Era da Aparência, todo mundo sonha em ser amado pelo que é, e não pelo que aparenta ser. Um dos impedimentos para esse sonho quixotesco é o fato de que os afetos reais, que persistem quando a paixonite de desfaz, só se desenvolve a partir de uma química corporal que só a proximidade revela, e também a partir da convivência com intimidade - o que não é possível no formato do programa em que há câmeras ligadas quase que o tempo todo.
De certa forma o Casamento às Cegas reproduz a dinâmica moderna das relações entre casais: tudo muito rápido, encontros que são mais projeções mútuas sobre parceiros ideais do que vontade legítima de conhecer alguém à fundo. A presença das câmaras e da superprodução para os encontros também reproduz o artificialismo que deixamos se infiltrar nas nossas relações. Sobra pouco espaço para a convivência sem máscaras, e muito palco para performances relacionais quase teatrais.
Os participantes que chegam ali, entram nas cabines de "namoro" por motivações diferentes. Estão ali, disponíveis, mas longe de estarem de fato dispostos a construir um relacionamento duradouro. Quem participa do Reality e chega até o fim tem garantia de entrar para o hall de subcelebridade, aumenta exponencialmente o numero de seguidores das redes sociais e capitaliza suas agendas e carreiras a partir disso. Ninguém sabe se estão ali para de fato encontrar a cara metade - provavelmente querem se expor para conseguir fãs ao invés de um parceiro de vida. O que vemos é uma vitrine humana sobre as relações amorosas em tempos de modernidade líquida, onde tudo precisa acontecer muito rápido, e na mesma velocidade que começa, acaba. A fila anda, a fila voa. A fila nunca acaba.
Eu admito que comecei a assistir a temporada 50 + com uma pontinha de esperança de que veria pessoas dispostas a se relacionar. O resultado trágico me fez assistir a outras temporadas - eu nunca tinha assistido à série antes - e o que eu concluí é que os casais mais jovens demonstraram ter mais resiliência para o convívio intenso que o programa promove. Os jovens também projetaram menos fantasias em seus pares, embora a idealização também estivesse presente. Muitos chegaram até o final e se casaram de fato, mas depois fiquei sabendo que se separaram em poucos meses - o que não chega a ser uma surpresa.
O que fica de reflexão é que os problemas de relacionamento não se resolvem sozinhos, com o passar da idade. A tendência é que piorem, se a pessoa em busca do amor não estiver disposta a assumir a responsabilidade sobre suas neuroses (adoecimento psíquico), se não conseguir admitir que todo relacionamento é construído sobre um sutil equilíbrio na troca, e que ambos os envolvidos são responsáveis pelo que acontece. Relacionamentos sãos os espelhos mais potentes para nos revelar o lado mais sombrio que carregamos. Sem a disposição sincera - e corajosa - de encarar as próprias sombras, a tendência é ficar vivendo a fantasia do apaixonamento pueril, pulando de galho em galho, voando como o Peter Pan, flanando na superficialidade inicial e cheia de dopamina que os encontros superficiais podem oferecer.
Jamila Gontijo é jornalista, editora do Brasília News, psicanalista junguiana e especialista em promover negócios e qualidade de vida.





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